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sábado, 22 de junho de 2024

Movimento “Criança não é mãe” deve fazer Arthur Lira recuar, por Tiago Almeida*

 
O Congresso Nacional Brasileiro está cada vez mais desconectado das pautas realmente estruturantes, desviando discussões complexas para o campo moral. Na arena social, a estratégia adotada pela extrema-direita é de tentar simplificar os debates ao submeter aos fóruns da internet, onde a superficialidade dos algoritmos comerciais prevalece. 
O exemplo mais recente disso é o Projeto de Lei 1904/2024, que propõe equiparar o aborto ao crime de homicídio. Na prática, uma mulher estuprada que engravide e aborte após 22 semanas enfrentará uma pena mais severa (6-20 anos) do que o estuprador (6-10 anos). Nessa perspectiva, a sociedade civil reage com os movimentos “criança não é mãe” e “PL do estuprador” que acerta na estratégia para a disputa social e pode fazer o presidente da câmara, Arthur Lira, recuar de seu gesto à ala bolsonarista.
A moralização do debate sobre o aborto não é um princípio religioso, mas uma tática política. Com o crescimento do número de evangélicos no país, tentar influenciar essa base por meio do discurso moral tornou-se um método da extrema-direita para aprofundar a polarização. Isto porque, o maior contraste sobre os chamados “temas de costume”, abre espaço para cooptação e enquadramento em outros temas ultraconservadores (econômicos, militares) que nada tem a ver com a sua doutrina evangélica. 
A teoria dos Fundamentos Morais, capitaneada por Jonathan Haidt, ilustra bem essa divisão: enquanto os mais à direita baseiam-se principalmente nos canais morais de pureza e autoridade, os progressistas enxergam o mundo sob a lente primordialmente da justiça e do cuidado. Essas discussões morais partem de fundamentos tão distintos que raramente convergem, resultando em diálogos fracassados e dificuldades de construir soluções consensuadas.
Por exemplo, uma pessoa pode ser contra a legalização do aborto e, ao mesmo tempo, a favor da pena de morte. Embora pareça um contrassenso defender a vida em um caso e tirá-la em outro, não é uma incoerência moral em si. Pode ser que, para um caso, pese a pureza, para o outro, a justiça. Os movimentos contrários ao PL 1904/2024 acertam ao entrar na guerra por atenção das redes sociais usando as mesmas armas. Enquanto a campanha “Criança não é mãe”, exalta a pureza, o “PL do estuprador” traz à tona a justiça. Isso intuitivamente sensibiliza toda a sociedade, gerando um conflito moral, e favorece a unidade contra o projeto de lei.
Afinal, ninguém é a favor do aborto. Para mulheres de esquerda ou de direita, evangélicas ou não, o trauma psicológico e social de um aborto é colossal. Além disso, estudos mostram que a criminalização não reduz a incidência de abortos, mas aumenta os riscos de procedimentos clandestinos e inseguros, afetando desproporcionalmente mulheres pobres, negras e periféricas, que têm menos acesso a serviços de saúde seguros. Portanto, parece que proteger as pessoas que prezam por valores morais da tentativa de tutela pela extrema-direita passa por entender quais fundamentos morais essas pessoas prezam e respeitar essa forma de diálogo.
Mas isso não é suficiente. Na arena política que viu Eduardo Cunha e Rodrigo Maia se fragilizarem ao fim dos seus mandatos, Arthur Lira atua no último terço da sua presidência para preservar a sua influência na oposição a fim de negociar sua sucessão e fazer acordos políticos com o governo. Infelizmente o tabuleiro político tem um peso enorme nos rumos desse PL, mesmo que isso signifique uma grave agressão aos direitos das mulheres com impacto certo na saúde pública. No mesmo tabuleiro, Lira deve recuar e evitar o desgaste de ser conhecido como o fiador do “PL do estuprador”.
*Tiago Almeida é médico e pós-graduando em Saúde Coletiva UFBA

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